Rafaela Santana de Paula Lopes
O novo Código Civil busca reconhecer legalmente a economia do cuidado/ o trabalho invisível da mulher doméstico, pois o tempo despendido em tarefas de cuidado a longo prazo, impactam no bem-estar e desenvolvimento dos membros da família. Ademais, visa igualar direitos e deveres de homens e mulheres em uma eventual dissolução conjugal, uma vez que a pensão alimentícia não considera a distribuição de recursos proporcional ao que ambos oferecem. Desse modo, o objetivo é incorporar explicitamente o valor do trabalho doméstico nas diretrizes de pensão alimentícia, garantindo o reconhecimento e a compensação de contribuições não monetárias. (Ruffing, & Coelho, 2024)
Além disso, por meio da nova atualização, visam garantir a equidade de gênero e desconstituir estereótipos e normas sociais que relegam o trabalho doméstico e afazeres nesse sentido apenas para o feminino.
Ademais, o reconhecimento do trabalho doméstico não remunerado feminino foi destacado na decisão da 12ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) no contexto da Economia do Cuidado. A economia do cuidado seria a valorização de trabalhados dedicados ao bem-estar dos outros, estando intrinsecamente ligado às responsabilidades da casa e aos cuidados com os membros da família, seja no âmbito da alimentação, limpeza, educação, criação ou gestação, sendo assim uma atividade que promove produtividade social, conforme descrito no relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) intitulado como “Care Works and Care Jobs for the Future of Decent Work”, publicado em 2018. (Carmo & Canhedo,, 2024)
Por fim, na decisão proferida pela 12ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR), que julgou uma ação de alimentos c/c regulamentação de convivência, foi destacado que as mulheres exercem tarefas que lhes causam sobrecarga de responsabilidade e acabam por diminuir oportunidades no mercado de trabalho, no aperfeiçoamento cultural e na vida pública em geral. Veja-se a jurisprudência do E. TJPR:
DIREITO DAS FAMÍLIAS. direitos humanos. AÇÃO DE ALIMENTOS C/C REGULAMENTAÇÃO DE CONVIVÊNCIA. tutela provisória de urgência. DECISÃO recorrida. fixação dos ALIMENTOS PROVISÓRIOS EM 50% DO SALÁRIO MÍNIMO AOS TRÊS FILHOS MENORES DE IDADE. AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO INTERPOSTO PELA MÃE. PLEITO DE fixação de ALIMENTOS PROVISÓRIOS EM 33% DOS RENDIMENTOS LÍQUIDOS DO AGRAVADO. OBSERVÂNCIA DO TRINÔMIO ALIMENTAR (POSSIBILIDADE-NECESSIDADE-PROPORCIONALIDADE). FILHOS EM IDADE INFANTIL. NECESSIDADE PRESUMIDA. TRABALHO doméstico DE CUIDADO diário e NÃO REMUNERADO da mulher. CONSIDERAÇÃO NO CÁLCULO DA proprocionalidade dos alimentos. adoção do protocolo de julgamento com perspectiva de gênero do conselho nacional de justiça. aplicação do PRINCÍPIO DA parentaliadade responsável. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.
1. A fixação dos alimentos deve obedecer a uma perspectiva solidária entre pais e filhos, pautada na ética do cuidado e nas noções constitucionais de cooperação, isonomia e justiça social, uma vez que se trata de direito fundamental inerente à satisfação das condições mínimas de vida digna, especialmente para crianças e adolescentes que, em virtude da falta de maturidade física e mental, são seres humanos vulneráveis, que necessitam de especial proteção jurídica. Exegese dos artigos 3º, inc. I, 6º e 229 da Constituição Federal, conjugado com os artigos 1.566, inc. IV, 1.694 e 1.696 do Código Civil, e 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Preâmbulo da Convenção sobre os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas, Recomendação nº 123/2022 do Conselho Nacional de Justiça e Precedente da Corte Interamericana de Direitos Humanos – Caso de los “Niños de la Calle” (Villagrán Morales y otros) Vs. Guatemala (1999).
2. O arbitramento judicial dos alimentos, devidos pelos pais para a manutenção dos filhos, deve observar a equação necessidades do alimentado, capacidade financeira ou possibilidade econômica dos alimentantes e a proporcionalidade dos recursos de cada genitor. Exegese dos artigos 1.566, inc. IV, 1.694, § 1º, e 1.703 do Código Civil.
3. Pela concepção finalística (e não institucional) e eudemonista, adotada na Constituição Federal de 1988, a família, como refúgio afetivo, é um meio de proteção dos direitos humanos-fundamentais, um instrumento à serviço da promoção da dignidade e do desenvolvimento humano, baseado no respeito mútuo, na igualdade e na autodeterminação individual, devendo assegurar a realização pessoal e a busca da felicidade possível aos seus integrantes. Interpretação do artigo 226, § 8º, 1ª parte, da Constituição Federal.
4. As relações familiares, porque marcadas pelo princípio da afetividade e sua manifestação pública (socioafetividade), devem estar estruturadas no dever jurídico do cuidado (que decorre, por exemplo, da liberalidade de gerar ou de adotar filhos) e na ética da responsabilidade (que, diferentemente da ética da convicção, valida comportamentos pelos resultados, não pela mera intenção) e da alteridade (que se estabelece no vínculo entre o “eu” e o “outro”, em que aquele é responsável pelo cuidado deste, enquanto forma de superação de egoísmos e narcisismos, causadores de todas as formas de situações de desentendimentos, intolerância, discriminações, riscos e violências, que trazem consequências nocivas principalmente para os seres humanos mais vulneráveis, como crianças, adolescentes, pessoas com deficiência, meninas/mulheres e idosos). Incidência dos artigos 229 da Constituição Federal e 1634, inc. I, e 1.694 do Código Civil. Precedentes do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Literatura jurídica.
5. Quando os filhos em idade infantil residem com a mãe, as atividades domésticas, inerentes ao dever diário de cuidado (como o preparo do alimento, a correção das tarefas escolares, a limpeza da casa para propiciar um ambiente limpo e saudável) – por exigirem uma disponibilidade de tempo maior da mulher, sobrecarga que lhe retira oportunidades no mercado de trabalho, no aperfeiçoamento cultural e na vida pública – devem ser consideradas, contabilizadas e valoradas, para fins de aplicação do princípio da proporcionalidade, no cálculo dos alimentos, uma vez que são indispensáveis à satisfação das necessidades, bem-estar e desenvolvimento integral (físico, mental, moral, espiritual e social) da criança. Inteligência dos artigos 1º e 3º, caput, do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) c/c artigo 3.2 da Convenção sobre os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas.
6. O princípio da parentalidade responsável (artigo 226, § 7º, da Constituição Federal) – concretizado por meio do pagamento de alimentos fixados em montante proporcional aos esforços da mulher, com a realização de trabalhos domésticos e diários na educação da criança – é um instrumento de desconstrução da neutralidade epistêmica e superação histórica de diferenças de gêneros, de identificação de estereótipos presentes na cultura que comprometem a imparcialidade jurídica, de promoção da equidade do dever de cuidado de pai e mãe no âmbito familiar, além de ser um meio de promoção de direitos humanos e de justiça social (artigos 4º, inc. II, e 170, caput, da Constituição Federal).
7. A presunção das necessidades de crianças e adolescentes à percepção de alimentos é uma técnica processual de facilitação da prova e de persuasão racional do juiz na promoção dos direitos fundamentais, para o desenvolvimento humano integral. Interpretação do artigo 373, inc. I, do Código de Processo Civil em conformidade com os artigos 5º, inc. XXXV e § 2º, da Constituição Federal, 4º da Convenção dos Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU) e 19 da Convenção Americana de Direitos Humanos.
8. A análise do montante ideal da pensão alimentícia, em relação às reais necessidades dos alimentandos, as condições econômicas do alimentante e a distribuição proporcional dos ônus financeiros decorrentes da paternidade/maternidade responsável, pode ser examinada em um momento processual futuro, diante do aprofundamento da discussão pelo exercício efetivo do contraditório e da ampla defesa, quando da confrontação pelo juiz, em decisão interlocutória posterior ou na sentença, da suficiência de argumentos e provas. Precedente do Superior Tribunal de Justiça.
9. Recurso conhecido e provido, para readequar o valor da prestação alimentícia para o correspondente a 33% dos rendimentos líquidos do alimentante (salário bruto, excluídos apenas os descontos obrigatórios), aí incluídos valores referentes a férias, 13º salário e adicionais permanentes. (TJPR – 12ª Câmara Cível – 0013506-22.2023.8.16.0000 – Rio Branco do Sul – Rel.: EDUARDO AUGUSTO SALOMAO CAMBI – J. 02.10.2023)
Diante do exposto, conclui-se que deve ser considerado todos os tipos de atividades domésticas no cálculo da proporcionalidade dos alimentos, respeitando princípios constitucionais de igualdade de direitos e obrigações entre mulheres e homens, previsto no art. 5, inciso I, bem como no princípio da parentalidade, previsto no art. 226, § 7º, ambos da Constituição Federal, sendo um avanço a discussão e implementação da normativa no novo Código Civil.
REFERÊNCIAS
CARMO, V. F. do; CANHEDO, N. Valorizando o invisível: reconhecimento do trabalho doméstico não remunerado feminino na decisão da 12ª câmara cível do tribunal de justiça do Paraná. Revista JRG de Estudos Acadêmicos, Brasil, São Paulo, v. 7, n. 14, p. e14965, 2024. DOI: 10.55892/jrg.v7i14.965. Disponível em: https://revistajrg.com/index.php/jrg/article/view/965. Acesso em: 19 ago. 2024.
Ruffing, T. S., & Coelho, F. A. (2024). Trabalho invisível das mães no cálculo da pensão alimentícia. CONTRIBUCIONES A LAS CIENCIAS SOCIALES, 17(4), e6444. Disponível em: https://doi.org/10.55905/revconv.17n.4-290. Acesso em: 19 de agosto de 2024.