Gustavo Henrique da Silva Araujo
A punibilidade constitui uma das condições essenciais para o exercício da ação penal, conforme previsto no artigo 43, inciso II, do Código de Processo Penal. Ela pode ser entendida como a possibilidade jurídica do Estado de impor a sanção penal, seja na forma de pena ou medida de segurança, ao autor do ilícito.
Para alguns autores, a punibilidade faz parte do próprio conceito dogmático de crime, embora não seja incluída no fato material. No entanto, a doutrina, de modo geral, e os sistemas jurídicos positivos distinguem claramente esses dois fenômenos, que se manifestam no mundo social e jurídico como situações de causa e efeito dentro de um contexto cultural e valorativo.
Punibilidade e pena possuem naturezas e conceitos distintos, sendo um equívoco fundamental unificar esses institutos sob uma concepção generalizadora, como sugerem os termos. A diferença entre eles é evidente, pois pode haver ilícito sem a imposição de pena, conforme previsto nos artigos 121, § 5º; 129, § 8º; 140, § 1º; 181; 242, parágrafo único; e 348, § 2º, do Código Penal (escusas absolutórias). Nessas situações, a isenção de pena pressupõe a existência do ilícito, ao passo que, sem a punibilidade, é logicamente impossível falar em crime (ou delito) e contravenção.
De acordo com o Código Penal, em regra, o pagamento pode caracterizar o arrependimento posterior, também conhecido como ponte de prata, descrito no art. 16 do Código Penal. Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de 1 (um) a 2/3 (dois terços). Repare que o pagamento não gera a extinção da punibilidade, mas sim autoriza a incidência de uma causa de diminuição de pena se esse adimplemento ocorrer até o recebimento da denúncia. Essa é a regra geral
Todavia, há exceções em que o pagamento (reparação do dano ou restituição da coisa) gera a extinção da punibilidade. Exemplos: a) Peculato culposo (art. 312, §3º do CP – No caso do parágrafo anterior, a reparação do dano, se precede a sentença irrecorrível, extingue a punibilidade; se lhe é posterior, reduz de metade a pena imposta); b) Fraude no pagamento de cheque (art. 171, §2º, VI, do CP – emite cheque, sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado, ou lhe frustra o pagamento.
Nesta senda, dispõe a Súmula 554 do STF:
O pagamento de cheque emitido sem provisão de fundos, após o recebimento da denúncia, não obsta ao prosseguimento da ação penal.
Outra exceção ocorre em relação aos crimes tributários, segundo se infere de sucessivas previsões legislativas. Vejamos:
Art. 9º da Lei 10684/03: É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1o e 2o da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168A e 337A do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento.
§ 1° A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva.
§ 2° Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios
O parcelamento prevê a suspensão da pretensão punitiva e da prescrição. Enquanto o parcelamento gera a suspensão da pretensão punitiva e da prescrição, o pagamento integral ocasiona a extinção da punibilidade. Assim, caso ocorra o inadimplemento das parcelas do REFIS, o Estado retomará a sua pretensão punitiva, ou seja, o inquérito policial ou a ação penal volta tramitar normalmente.
Ressalta-se que essa extinção da punibilidade não se estende a crimes diversos dos tributários (exs: associação criminosa, lavagem de dinheiro, etc.)
Considerando que o artigo 9° da Lei 10684/03 não estabelece nenhum marco temporal, a doutrina e a jurisprudência caminharam no sentido de que esse parcelamento poderia ser realizado a qualquer momento, desde que antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
Nesse sentido o entendimento do STJ:
EXECUÇÃO PENAL. HABEAS CORPUS. IMPETRAÇÃO SUBSTITUTIVA. IMPROPRIEDADE DA VIA ELEITA. APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA. QUITAÇÃO INTEGRAL DO DÉBITO. SENTENÇA TRANSITADA EM JULGADO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. ART. 9º, DA LEI N.º 10.684/03. IMPOSSIBILIDADE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. NÃO OCORRÊNCIA. WRIT NÃO CONHECIDO. 1. É imperiosa a necessidade de racionalização do emprego do habeas corpus, em prestígio ao âmbito de cognição da garantia constitucional, e, em louvor à lógica do sistema recursal. In casu, foi impetrada indevidamente a ordem como substitutiva de recurso ordinário. 2. Hipótese em que não há flagrante constrangimento ilegal a ser sanado de ofício. O art. 9º da Lei n.º 10.684/03 trata da extinção da punibilidade pelo pagamento da dívida previdenciária, antes do trânsito em julgado da condenação, uma vez que faz menção expressa à pretensão punitiva do Estado. Não há que se falar em extinção da punibilidade pelo pagamento, quando se trata de pretensão executória, que é o caso dos autos. 3. Habeas Corpus não conhecido. (HC 302.059/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 03/02/2015, DJe 11/02/2015)
Um importante julgado sobre causas de extinção e suspensão da punibilidade nos crimes contra a ordem tributária se deu com o enfrentamento desse tema pelo Supremo Tribunal Federal nos autos da ADI nº 4.273/DF, ocasião em que o Pretório Excelso abrandou a responsabilização penal dessas práticas criminosas, fixando a seguinte tese: “São constitucionais — por não violarem os preceitos dos arts. 3º, I a IV, e 5º, “caput”, ambos da CF/1988 nem o princípio da proporcionalidade, sob a perspectiva da proibição da proteção deficiente — dispositivos de leis que estabelecem a suspensão da pretensão punitiva estatal, em consequência do parcelamento de débitos tributários, bem como a extinção da punibilidade do agente, se realizado o pagamento integral.”
Portanto, o legislador penal-tributário, atuando em espaço de conformação que lhe é próprio, conferiu prevalência à política de arrecadação dos tributos e de restabelecimento das atividades econômicas das empresas. Nesse contexto, a adoção dessas medidas de despenalização (causas suspensiva e extintiva de punibilidade, decorrentes do parcelamento ou pagamento integral dos débitos tributários), além de estimular essencialmente a reparação do dano causado ao erário, contribui para a concretização dos objetivos fundamentais da República (CF/1988, art. 3º).
REFERÊNCIAS
BARROS, Paulo de Carvalho. Direito tributário – Linguagem e Método.Noeses. São Paulo, 2021.
CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL, disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172compilado.htm. Acesso em: 30/08/2024.
CÓDIGO PENAL. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 30/08/2024.
LEÃO, Martha. Fundamentos Constitucionais da Tributação. In: PINTO, Alexandre Evaristo; PITMAN, Arthur; SILVA, Fábio Ferreira da. Manual de Gestão Tributária, 1ª ed. São Paulo: Atlas, 2023, p. 16.
MASSON, Cleber. Direito Penal: Parte Geral. 12. ed. São Paulo: Método, 2020.
PISCITELLI, Tathiane. Curso de Direito Tributário. Revista dos Tribunais. São Paulo, 2024.
PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário Completo, 14ª ed. São Paulo: SaraivaJur, 2023. E-book.
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