Helder Jean Thibes Junior
Encontra-se em análise pelo Senado Federal o anteprojeto para reforma do Código Civil Brasileiro, proposto pela comissão de juristas presidida pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça Luis Felipe Salomão. O projeto sugere consideráveis mudanças na esfera do direito da família, da responsabilidade civil, no direito empresarial, entre outros institutos jurídicos, incluindo o Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica.
Como se bem sabe, a personalidade jurídica é um instituto criado para impulsionar o desenvolvimento econômico e empresarial, proporcionando segurança ao empresário e reduzindo significativamente os riscos e responsabilidades derivados do exercício da atividade empresária. Para tanto, criou-se a chamada “autonomia patrimonial”, prevista pelo art. 1.024 do Código Civil, o qual dispõe que “os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade, senão depois de executados os bens sociais”.
Através da autonomia patrimonial estabeleceu-se que os sócios não podem ter seu patrimônio particular atingido por débitos de sua sociedade, ao tempo que, em outra perspectiva, os bens de uma sociedade empresária não poderiam ser atingidos a fim de quitar débitos de outra. Tal cenário só se descontruiria se caracterizado o abuso da personalidade jurídica, o que se faz através de um incidente de desconsideração.
A desconsideração da personalidade jurídica foi inicialmente adotada pela jurisprudência e doutrina brasileira por volta da metade do século XX. Á época, foi pensada para solucionar situações de abuso onde, a autonomia patrimonial era utilizada pelos administradores da pessoa jurídica, a fim de blindar seus bens particulares, cometendo atos prejudiciais e fraudulentos contra credores.
Embora tenha sido incorporada à normativa brasileira com a Lei nº 8.078 de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), a desconsideração da personalidade jurídica como se conhece foi efetivamente positivada no ordenamento jurídico civil brasileiro apenas com a entrada em vigor do novo Código Civil em 2002, em seu artigo 50 o qual traduz: “Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso”.
Desde de sua inclusão na normativa brasileira, a desconsideração da personalidade jurídica sofreu uma série de alterações legislativa, sobretudo, a fim de trazer maior força a autonomia patrimonial e excepcionalidade ao presente instituto, como é o caso da Lei nº 13.874/2019, a qual trouxe como requisito, que os administradores ou sócios da pessoa jurídica tivessem obtido benefícios diretos ou indiretos decorrentes do abuso da personalidade.
Recentemente, no julgamento de Recurso Especial n. 925.959/SP, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, decidiu que, em caso de rejeição do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, cabe a parte que seria desconsiderada honorários de sucumbência, fator que mais uma vez desestimula a adoção da medida.
Diante a evolução histórica do tema, chega agora para votação do plenário o anteprojeto para reforma do Código Civil de 2002, trazendo uma série de mudanças, entre elas, ao instituto da desconsideração da personalidade jurídica, alterando o texto do art. 50, e introduzindo uma série de novos parágrafos, os quais analisa-se em sequência.
O anteprojeto estabelece que, na fase final, a desconsideração da personalidade jurídica pode abranger não só o patrimônio de administradores e sócios, mas também o de associados da entidade. Ainda, reforça os §§ 2º e §§ 3º, que apenas os associados que têm poder de decisão ou influência significativa sobre as decisões que levaram ao abuso da personalidade jurídica, poderão ser responsabilizados.
Tal novidade é de grande importância, pois amplia explicitamente a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica para incluir também pessoas jurídicas que não atuam como empresas. Vê-se um alinhamento de propostas com o novo §1º do artigo 50, que estabelece que “as disposições deste artigo se aplicam a todas as pessoas jurídicas de direito privado, nacionais ou estrangeiras, com atividade civil ou empresária, mesmo que prestadoras de serviço público.” Assim, observa-se uma clara intenção de expandir as possibilidades de aplicação desse instituto, o que parece contrastar com as tendências legislativas anteriores discutidas neste texto.
Por outro lado, o anteprojeto propõe uma alteração no caput do artigo 50 que segue uma abordagem mais restritiva, em linha com a tendência legislativa anterior. Enquanto o texto atual estabelece que a desconsideração alcançaria os “bens particulares”, a nova proposta define que a desconsideração se aplicará aos “bens de propriedade” de administradores, sócios ou associados.
A mudança na terminologia pode ser significativa, especialmente se a jurisprudência interpretar o conceito de propriedade de maneira restritiva, conforme o direito real descrito no artigo 1.225 do Código Civil. Tal interpretação diferenciaria a propriedade, por exemplo, de direitos como a superfície, o usufruto, o penhor e a hipoteca.
Em suma, o anteprojeto em questão apresenta importantes inovações e ajustes no tratamento da desconsideração da personalidade jurídica. Ao expandir a possibilidade de desconsideração para incluir o patrimônio de associados das pessoas jurídicas, ao tempo que restringe a noção de propriedade, revelam uma tentativa de equilibrar a ampliação das possibilidades de desconsideração com uma abordagem mais precisa na definição dos bens sujeitos a essa medida, refletindo um movimento legislativo dualista, que busca adequar o instituto às necessidades das classes sociais contemporâneas e à evolução dos conceitos jurídicos.