Mariana Santana Tavela
Sabe-se que no âmbito jurisdicional as normas fundamentais do Código de Processo Civil devem ser interpretadas à luz do relacionamento entre a legislação processual infraconstitucional vigente e a Constituição Federal de 1988, principalmente no que tange os princípios fundamentais nela inseridos.
Entende-se por princípios fundamentais de acordo com Marcus Vinicius Rios Gonçalves (2016, p. 64), “aquelas premissas sobre as quais se apoiam as ciências. Desde que o Processo Civil conquistou status de ciência autônoma, tornou-se necessária a formulação de seus princípios fundamentais. Eles servem de diretrizes gerais, que orientam a ciência.”, e no mesmo sentindo assevera Jadir Cirqueira de Souza que (2010, p. 94) “Os princípios fundamentais constituem a estrutura do sistema normativo constitucional. Por isso, são imprescindíveis para a correta interpretação e a integração de qualquer norma vigente, bem como em relação à manutenção da integralidade do próprio sistema”.
Por isso, os artigos 1º ao 12º do respectivo diploma legal, que além de estabelecer regras processuais, buscam traduzir em suas disposições a natureza propícia de direitos fundamentais, até mesmo já elencados na Carta Magna brasileira. Dos princípios contidos no CPC, deve ser explano com correspondência direta ao presente tema é o princípio da cooperação.
Inicialmente cumpre salientar, que o princípio da cooperação promove a preservação do sistema adversarial, dialético, mas na medida do possível e com previsão legal, as partes entre si e com o juiz, e o juiz para com as partes, devem evitar que situações de dúvida, de incerteza, de insegurança permaneçam, devendo buscar a solução do litígio de forma mais fácil, simplificando as questões necessárias ao deslinde da demanda.
Sendo assim, são exemplos viáveis da aplicação do princípio da cooperação no processo civil: (i) mandado de citação deve trazer o prazo para defesa – art. 250, III, do CPC; (ii) o juiz ao determinar a emenda da inicial irá indicar o ponto exato a ser corrigido – art. 321 do CPC; (iii) juiz deve indicar de quem é o ônus da prova – carga dinâmica da prova – art. 357, III, do CPC; e (iv) perícia consensual – art. 471 do CPC. As partes em comum acordo escolhem perito, apresentam assistentes técnicos, quesitos e forma de remuneração, para realização da prova técnica.
Este último exemplo se situa no âmbito dos chamados “negócios jurídicos processuais”, que foi uma inovação trazida ao CPC e visam a dar caráter menos publicista (mais privatista) ao processo civil brasileiro, permitindo às partes a autonomia em certos aspectos do procedimento judicial, mesmo em sede de jurisdição estatal, alheia à arbitragem convencional.
O negócio jurídico processual pode ser definido como “o ato voluntário, em cujo suporte fático confere-se ao sujeito o poder de escolher a categoria jurídica ou estabelecer, dentro dos limites fixados no próprio ordenamento jurídico, certas situações jurídicas processuais” (DIDIER JR., 2015. p.376-377). A vontade, portanto, é manifestada para compor o suporte fático de certa categoria jurídica, visando à obtenção de efeitos jurídicos que podem ser predeterminados pelo sistema ou pactuados livremente (MELLO, 1991, p. 130).
Desse modo, integram o suporte fático do negócio jurídico (i) a manifestação consciente de vontade visando a autoregulamentação de uma situação jurídica simples ou da eficácia de uma relação jurídica, (ii) a existência de um poder de determinação da categoria jurídica; e (iii) a existência de um processo a que se refira.
Em que pese a regulamentação na normativa processual sobre a liberdade de agir no processo de acordo com as vontades ali inseridas, deve ser salientado que a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no julgamento REsp 1.810.444 – SP, entendeu pela impossibilidade de convenção entre as partes sobre matéria regida por norma de ordem pública, em que a aplicação nesse caso seria obrigatória.
Para o Ministro Relator, a cláusula geral do negócio jurídico processual prevista no CPC surgiu como uma alternativa ao modelo procedimental rígido estabelecido em lei, permitindo maior flexibilidade no sistema e conferindo às partes a autonomia para gerir seu processo.
No entanto, o artigo 190 do CPC apenas reconheceu a existência dos negócios processuais sem definir com precisão seus contornos, optando por utilizar termos mais vagos para descrever a cláusula geral.
Nesse aspecto, juristas mencionados pelo relator em seu voto afirmaram que, quando o acordo processual impactar poderes, deveres ou faculdades do juiz, será necessário obter sua concordância com os termos, com base em juízo discricionário. Ainda assim, mencionou o ministro ao analisar a casuística, que o juiz não será parte da convenção processual, pois não age em nome próprio, mas sim em nome do Estado, e, portanto, “não pode dispor de situação alguma”.
Portanto, resta conclusivo que a modificação do procedimento convencionada entre as partes por meio do negócio jurídico sujeita-se a limites, consoante entendimento exarado pela Quarta Turma do STJ no recurso mencionado, devendo sua atuação ser condicionada ao exercício do múnus público da jurisdição.
REFERÊNCIAS
DIDIER JÚNIOR, Fredie. Princípio do respeito ao autorregramento da vontade no processo civil. Revista Páginas de Direito, Porto Alegre, ano 15, nº 1250, 01 de junho de 2015. Disponível em: http://www.tex.pro.br/index.php/artigos/306-artigos-jun-2015/7187-principio-do-respeito-ao-autorregramento-da-vontade-no-processo-civil
______, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2015. v. 3.
______. Art. 190. In: STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle; CUNHA, Leonardo Carneiro da; (Org.). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 293-303.