Gabriel Felipe Gaspar Santos
Siegfried Ellwanger Castan foi um escritor gaúcho que possuía uma editora intitulada ‘’Revisão’’ a qual foi acusada por disseminação de conteúdo antissemita no ano de 1991. A acusação, MOPAR, se baseava no fato de Ellwanger vendia livros como ‘’ Holocausto: Judeu ou alemão?’’ , ‘’Brasil Colônia de Banqueiros’’ , ‘’O Judeu Internacional ‘’ que propunham uma visão negativa do povo judeu, além de alegar que fatos históricos como o Holocausto não se passava de um grande mito criado por judeus para impedir Hitler de aumentar seu poder econômico e afetar as potências mundiais da época vigente.
Apesar do não sucesso em primeira instância com alegações do Ministério Público de insuficiência de provas, a acusação levou para o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul onde Siegfried foi condenado, em 1996, a 2 anos de reclusão com sursis por quatro anos.
No entanto, a defesa do réu entrou com pedido de Habeas Corpus no ano de 2001 no Superior Tribunal de Justiça, o qual teve seu pedido indeferido. No ano de 2002, a acusação entra novamente com pedido de Habeas Corpus, agora no Supremo Tribunal Federal, alegando que o seu cliente, Siegfried Ellwanger Castan, tinha sofrido constrangimento ilícito da decisão majoritária do Superior Tribunal de Justiça e sustentando o fato de que Ellwanger não havia cometido um crime de racismo , pois os Judeus não se configurariam como raça, nas palavras do impetrante ‘’ Não se está discutindo, aqui, o mérito da condenação. Apenas, neste pedido, está se afirmando que o paciente não foi condenado por crime de racismo’’.
O julgamento, então, teve como sua raiz a discussão de se os Judeus são/deveriam ser considerados uma raça e se fosse necessário a aplicável da lei de racismo levando a imprescritibilidade do crime, como descrito no artigo 5º, XLII, da Constituição.
Dentre os votos dos ministros que julgaram esse caso, é claro o destaque do voto do Ministro Moreira Alves, que acabou por deferir o pedido de Habeas Corpus por acreditar que os Judeus de fato não se classificariam como uma raça, como comumente são reconhecidas brancos e negros. E seu fundamento parte do princípio de que desde a criação da Lei Caó e sua vinculação no artigo 5º, XLII, da Constituição, a prática se voltaria contra minorias negras. Ademais, além de citar doutrinadores como Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Cretella Júnior e outros, o ministro cita o rabino Henry I. Sobel que salienta que os judeus não se configuram como raça, podendo pertencer a qualquer espécime humana, seja branca, negra, de origem oriental ou ocidental.
Notoriamente, embora o voto do Relator Moreira Alves ter sido a favor do deferimento do pedido de Habeas Corpus o Acórdão se mostrou contra o pedido e um dos pareceres que é elementar exibir é o do Ministro Maurício Corrêa. Ele sustenta o seu posicionamento com o pensamento de que fundamentalmente não há raças humanas, não sendo possível classificar biologicamente como ‘’brancos’’ , ‘’negros’’ ou no caso ‘’judeus’’ , mas sim uma construção político-social , configurando então a classificação dos judeus no que tange a lei de racismo. Por fim, o ministro também salienta como é colocado o artigo 5º, XLII, da Constituição in verbis ‘’a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei’’ pois a ênfase do crime não é no conceito de raça, mas sim na prática de racismo.
A grande relevância desse debate não é definir se Judeus são de fato uma raça ou não, mas sim estabelecer critérios que levem o bom jurista a compreender a aplicabilidade da lei de racismo. Com o STF fazendo o seu julgamento e conceituando e decidindo que a prática de antissemitismo configura como uma conduta que se enquadra dentro do crime de racismo, trás através do princípio da Uniformização das Decisões Judiciais uma maior estabilidade jurídica quanto ao entendimento de futuros processos que abordam o antissemitismo.
Outra questão que o caso Siegfried aborda e que até hoje é um grande dilema para a sociedade brasileira é , inegavelmente, os limites da liberdade de expressão. Sabe-se que o povo brasileiro sofreu em sua história momentos de repressão diante ao direito de se expressar e por isso temos em nossa Carta Magna como cláusula pétrea, elencada no artigo 5º, que a liberdade de expressão é um direito de todo cidadão brasileiro. Porém, apesar de indefinido as margens desse direito, o caso do escritor e editor Ellwanger demonstra que o princípio dessa liberdade , que por sua vez acaba por ser relativa, não ultrapassa o princípio da dignidade humana, que se demonstra absoluta, ou seja, não pode ser maior que a preservação da imagem,respeito,honra e os valores de um ou mais indivíduos.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 7716, de 5 de janeiro de 1989. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA. Constituição da República Federativa do Brasil, [S. l.], 5 jan. 1989.
BBC NEWS. Como julgamento de neonazista gaúcho em 2003 determinou como Brasil vê a liberdade de expressão. BBC NEWS Brasil, São Paulo, p. 1, 11 fev. 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-60353371. Acesso em: 30 jun. 2024.
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. 64. ed. atual. Brasília: Livraria do Senado, 2023. 311 p. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 30 jun. 2024.