João Victor Fonseca1
Um negócio jurídico válido, quando firmado, vincula os participantes ao seu cumprimento, fato descrito pela famosa expressão pacta sunt servanda. Do seu descumprimento, possível exigir-se junto ao judiciário sua efetivação, como no caso de uma ação de execução.
No Código de Processo Civil, por exemplo, a obrigatoriedade deste cumprimento também é assegurada, especialmente quando se trata do adimplemento de obrigação pecuniária estipulado entre as partes, conforme se observa no art. 789 deste codex, o qual define que o devedor tem o dever de responder com toda a extensão de seu patrimônio, inclusive futuro.
Ocorre que este entendimento não é mais considerado como absoluto, conforme positivado pelo art. 832, do CPC, tendo em vista a necessidade de se resguardar a dignidade da pessoa natural e a manutenção da pessoa jurídica, evitando que os efeitos da tutela jurisdicional venha a atingir direitos de cunho não patrimonial.
Por este motivo, o legislador definiu também no Código de Processo Civil, em seu art. 833, o rol de bens sobre os quais recai o instituto da impenhorabilidade, ou seja, bens que não podem ser alvo dos atos judiciais expropriatórios, nem mesmo para satisfazer o débito pugnado.
Para o presente artigo, necessário destacar o inciso IV do art. 833, do CPC, o qual define como impenhoráveis: “IV – os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, ressalvado o § 2º”.
1 Advogado no setor contencioso cível. E-mail: joao.victor@fmadvoc.com.br.
Os motivos pelos quais as verbas salariais foram eleitas como impenhoráveis são evidentes, vez que estes valores figuram como a base do sustento de toda a população, de modo que caso ausente, não há garantia que o devedor conseguirá manter um padrão de vida que atenda aos requisitos mínimos da dignidade humana.
Ocorre, no entanto, que a mencionada impenhorabilidade também vem sendo relativizada, entendimento positivado já na promulgação do Código de Processo Civil de 2015, o qual modificou o termo “absolutamente impenhoráveis” para apenas “impenhoráveis”, permitindo a mencionada flexibilização.
Esta mudança foi precedida por uma grande controvérsia, já existente inclusive na vigência do Código de Processo Civil de 1973, podendo constatar-se precedentes do E. Superior Tribunal de Justiça que permitiam a penhora de certa parcela salarial do devedor, como é o caso dos REsp 1.326.394, julgado pela Terceira Turma na data de 18/03/2013, sob a relatoria da Ministra Nancy Andrighi2.
A mencionada discussão girou em torno do equilíbrio entre a máxima efetividade da demanda judicial, aliado à boa-fé, com a dignidade do devedor, concluindo-se que a flexibilização da impenhorabilidade seria possível caso o montante remanescente após a expropriação fosse suficiente para preservar os direitos fundamentais da parte inadimplente.
Em um primeiro momento, a mencionada relativização só foi aplicada em casos que tinham como objetivo a cobrança de pensão alimentícia, tendo em vista que o importe pretendido também visava a manutenção da dignidade humana – neste caso do indivíduo que a receberia – o que permitiria a penhora.
No entanto, mais adiante, a mencionada matéria foi pacificada perante o E. STF, decidindo-se que caso o devedor perceber remuneração mensal superior a 50 (cinquenta) salários-mínimos, poderá ser aplicada penhora de até 30% (trinta por
2 PROCESSO CIVIL. CRÉDITO REFERENTE A HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. CARÁTER ALIMENTAR. PENHORA NO ROSTO DOS AUTOS. POSSIBILIDADE. EXCEÇÃO. PECULIARIDADES DO CASO CONCRETO. NECESSIDADE DE INTERPRETAÇÃO TELEOLÓGICA DO ART. 649, IV, DO CPC. MÁXIMA EFETIVIDADE DAS NORMAS EM CONFLITO GARANTIDA. 1. A hipótese dos autos possui peculiaridades que reclamam uma solução que valorize a interpretação teleológica em detrimento da interpretação literal do art. 649, IV, do CPC, para que a aplicação da regra não se dissocie da finalidade e dos princípios que lhe dão suporte. 2. A regra do art. 649, IV, do CPC constitui uma imunidade desarrazoada na espécie. Isso porque: (i) a penhora visa a satisfação de crédito originado da ausência de repasse dos valores que os recorrentes receberam na condição de advogados do recorrido; (ii) a penhora de parcela dos honorários não compromete à subsistência do executado e (iii) a penhora de dinheiro é o melhor meio para garantir a celeridade e a efetividade da tutela jurisdicional, ainda mais quando o exequente já possui mais de 80 anos. 2. A decisão recorrida conferiu a máxima efetividade às normas em conflito, pois a penhora de 20% não compromete a subsistência digna do executado – mantendo resguardados os princípios que fundamentam axiologicamente a regra do art. 649, IV do CPC – e preserva a dignidade do credor e o seu direito à tutela executiva. 3. Negado provimento ao recurso especial. (STJ, 3ª Turma. REsp 1326394/SP. Rel. Nancy Andrighi, julgado em 12/3/2013, DJe em 18/03/2013).
cento) deste valor, ainda que o crédito exequendo não tenha teor alimentício, ressalvando-se ainda as características do caso concreto a fim de garantir o mínimo existencial ao devedor.
Todavia, a aplicação desta flexibilização fica vinculada ao esgotamento dos demais meios capazes de satisfazer o débito, em cumprimento ao princípio da menor onerosidade ao devedor, conforme definido nos Embargos de Divergência em REsp nº 1.874.222/DF, presidido pelo Relator Ministro João Otávio de Noronha, com julgamento em data 19/04/2023, que confirmou este entendimento.3
Conclui-se que a flexibilização da impenhorabilidade de verbas salariais figurou como um importante passo à garantia de uma maior efetividade às execuções, ainda mantendo como ponto principal a manutenção dos direitos fundamentais do devedor, sendo sempre necessária uma cuidadosa análise do caso concreto para que seja alcançado este equilíbrio.
REFERÊNCIAS
BRASIL, Lei n. 13.105 de 16 de março de 2015.Código de Processo Civil Brasileiro de 2015. Senado Federal, Brasília, 2015;
PERGORARO JUNIOR, Paulo Roberto. Interpretação extensiva da impenhorabilidade de quarenta salários mínimos para outras aplicações financeiras
3 PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. PENHORA. PERCENTUAL DE VERBA SALARIAL. IMPENHORABILIDADE (ART. 833, IV e § 2º, CPC/2015). RELATIVIZAÇÃO. POSSIBILIDADE. CARÁTER EXCEPCIONAL.
1. O CPC de 2015 trata a impenhorabilidade como relativa, podendo ser mitigada à luz de um julgamento principio lógico, mediante a ponderação dos princípios da menor onerosidade para o devedor e da efetividade da execução para o credor, ambos informados pela dignidade da pessoa humana.
2. Admite-se a relativização da regra da impenhorabilidade das verbas de natureza salarial, independentemente da natureza da dívida a ser paga e do valor recebido pelo devedor, condicionada, apenas, a que a medida constritiva não comprometa a subsistência digna do devedor e de sua família.
3. Essa relativização reveste-se de caráter excepcional e só deve ser feita quando restarem inviabilizados outros meios executórios que possam garantir a efetividade da execução e desde que avaliado concretamente o impacto da constrição na subsistência digna do devedor e de seus familiares.
4. Ao permitir, como regra geral, a mitigação da impenhorabilidade quando o devedor receber valores que excedam a 50 salários mínimos, o § 2º do art. 833 do CPC não proíbe que haja ponderação da regra nas hipóteses de não excederem (EDcl nos EREsp n. 1.518.169/DF, relatora Ministra Nancy Andrighi, Corte Especial, DJe de 24.5.2019).
5. Embargos de divergência conhecidos e providos.
(EREsp n. 1.874.222/DF, relator Ministro João Otávio de Noronha, Corte Especial, julgado em 19/4/2023, DJe de 24/5/2023.)
além da caderneta de poupança, análise do REsp 1.230.060/PR. Revista Bonijuris, ano XXVII, nº 616, p. 10-16, março, 2015;
MEDEIROS NETO, Elias Marques de. Penhora de Percentual do Faturamento. São Paulo: Editora Saraiva, 2021. E-book. ISBN 9786553622494;
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Vol. 3. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2021. E-book. ISBN 9786559642373;
GUERRA, Marcelo Lima. Direitos fundamentais e a proteção do credor na execução civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.