Miyslaine Alves de Souza
Há anos o Brasil tem se destacado na produção de produtos do setor agropecuário, liderando entre 187 países, dado esse confirmado por estudo do Economic Research Service, um órgão do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA), que serviu como base para informativo do Ministério da Agricultura e Pecuária, publicado pela jornalista Inez De Podestà, em novembro de 2021.
Vários foram os fatores que contribuíram para que o agronegócio nacional alcançasse esse nível, “entre eles, o aumento de recursos, com destaque para o crédito de investimento, além da criação de várias linhas de financiamento para a agricultura comercial e familiar”, explica os pesquisadores, que analisaram os dados do USDA, conforme a Nota nº 28-2021 do MAPA.
Atualmente, o crédito rural é o principal mecanismo de política agrícola no Brasil, podendo ser concedido por meio de empréstimos, financiamentos, abertura de crédito e demais modalidades de acesso. Tendo como principal objetivo, conforme preleciona o jurista Lutero de Paiva Pereira, o fomento da atividade rural.
O crédito rural foi previsto primeiro pela Lei nº 454/1937, e posteriormente, definido pelo art. 2º da Lei 4.829/1965, como “o suprimento de recursos financeiros por entidades públicas e entidades de crédito particulares a produtores rurais ou a cooperativas para aplicação exclusiva em atividades que se enquadrem nos objetivos indicados na legislação em vigor”, e, conforme o art. 1º da mesma Lei, deve “ser distribuído e aplicado de acordo com a política de desenvolvimento da produção rural do País e tendo em vista o bem-estar do povo”.
Assim, o crédito rural não é utilizado unicamente para potencializar o negócio de pequenos, médios ou grandes produtores rurais, mas sim para o incentivo à agricultura e à pecuária, gerando empregos, movimentando renda e produzindo alimentos. E, justamente por esse motivo, nas palavras do professor Arnaldo Rizzardo é que o crédito concedido a produtores rurais, quando destinado exclusivamente ao custeio, investimento, comercialização ou industrialização de seus setores de produção, possui um “tratamento especial de proteção” assegurado por lei.
Quanto a isso, ainda segundo Rizzardo, o referido “tratamento especial”, condiciona as partes (produtor rural e a instituição financeira), a regras que limitam suas vontades quanto a estipulação de avenças contratuais, como por exemplo a finalidade do crédito, a taxa de juros, dentre outras coisas. Em outras palavras: “[…] por isso, o crédito bancário concedido neste setor deve ser obrigatoriamente empregado na produção agrícola ou pecuária, não se permitindo desvio para finalidade outras, sob pena de ser considerado vencido antecipadamente o contrato” (RIZZARDO, pg. 491, 2022).
No intuito de facilitar ainda mais o fluxo de concessão de créditos, estes são operacionalizados pelos chamados “títulos de crédito”, que geralmente formalizam operações de financiamento, empréstimo ou mesmo de compra e venda a prazo, quais sejam, conforme o art. 9º da Lei 167/1967: a cédula rural pignoratícia, a cédula rural hipotecaria, a cédula rural pignoratícia e hipotecária e nota de crédito rural. Contudo, devido às necessidades de mercado e, em especial a conduta das instituições financeiras de formalizarem a concessão de crédito rural por meio de cédulas de crédito bancário, no ano de 2004, com o advento da Lei nº 10.931, a CCB – cédula de crédito bancário passou a ser prevista no rol de título de créditos rurais, conforme consta o MCR.3.1.1.
Acontece que apesar da previsão expressa de que a CCB pode formalizar uma operação de crédito rural, muitas instituições financeiras, utilizando-se de tal título, concedem o crédito rural para produtos rurais, por meio de CCB, sem a observância das diretrizes específicas que regem os financiamentos e empréstimos rurais.
Em outras palavras, utilizam-se da CCB como meio de violar os direitos dos produtores rurais, devidamente garantidos pelas leis acima indicadas e pelas várias Resoluções do Banco Central, consolidadas no Manual de Crédito Rural – MCR, aplicando assim juros moratórios e remuneratórios acima do percentual permitido, pactuando cláusulas incompatíveis com as diretrizes específicas, negando a possibilidade do benefício do alongamento rural, dentre outras coisas.
Para sustentar tais violações, é comum que as instituições financeiras se apoiem no argumento de que caso o crédito rural seja concedido por meio de uma CCB, o crédito supostamente perde sua natureza especial, e assim, deve se sujeitar às diretrizes comuns do direito bancário. Entendimento este, que todavia, não se sustenta frente a jurisprudência consolidada dos Tribunais, em especial do E. TJPR, que em diversos precedentes preconiza que o que define se uma cédula de crédito tem como objeto crédito rural, é a destinação a qual o crédito foi empregado e não necessariamente a forma a qual foi operacionalizado.
À vista disso, observa-se o teor do acórdão de AC nº 0002729-41.2017.8.16.0047, de relatoria do Des. Fernando Ferreira de Morais, datado de 2021, assim como do acórdão de AC nº 0000099-88.2021.8.16.0041, de relatoria do Des. Marco Antônio Massaneiro, datado de 2022, ambos entenderam pela submissão da CCB as diretrizes das leis que regem o crédito rural, pois foi comprovado que o crédito concedido havia sido utilizado unicamente na atividade profissional/empresarial do produtor rural, seja como forma de custeio, investimento, industrialização ou comercialização das mercadorias produzidas.
Por fim, cumpre destacar, que nestes casos, o principal requisito para a caracterização do crédito de uma CCB, como crédito rural, é a comprovação de sua destinação, seja por meio de documentos, como por exemplo notas fiscais, recibos, duplicatas que demonstrem compra de materiais, insumos, animais e, outros meios de prova, como fotografias, que sejam suficientes para demonstrar a utilização dos créditos.
Conclui-se assim, que a Cédula de Crédito Bancário é título hábil a operacionalizar a concessão de crédito rural, mesmo quando a CCB não especifique claramente a finalidade do crédito, contanto que seja possível a comprovação de que a integralidade dos recursos objeto do contrato de mútuo, foram empregues na atividade rural.
REFERÊNCIAS
GASQUES, J. G.; BASTOS, E. T.; BACCHI, M. R. Produtividade total dos fatores: Brasil e países selecionados. Nota nº 28-2021/CGPLAC/DAEP/SPA/MAPA Brasília, DF: Mapa, 2021.
PEREIRA, L. Paiva. Comentários à lei da cédula de produto rural. 5ª Ed. Revista e Atualizada, 2014.
RIZZARDO, Arnaldo. Direito do Agronegócio. 6ª edição – Editora Forense, 2021.