Natan Roberto Tissei São José
Em maio de 2024, o Rio Grande do Sul enfrenta uma grave situação de enchentes que afetaram diversas regiões do estado. As águas inundam áreas urbanas e rurais, causando danos materiais, deslocamentos populacionais e transtornos significativos para a população local.
Diante dessa calamidade, surge a necessidade da análise e compreensão das questões jurídicas emergentes, incluindo a responsabilidade civil, os direitos dos afetados e as obrigações contratuais impossíveis de serem cumpridas devido à catástrofe.
Neste contexto, tendo em vista a cadeia de problemas que virá a se desenrolar diante da tragédia, se faz necessário fazer uma análise de como se tem se posicionado o ordenamento jurídico frente aos contratos afetados por circunstâncias excepcionais.
O princípio do pacta sunt servanda, fundamental nos contratos, exige o cumprimento das obrigações pactuadas entre as partes. No entanto, existem exceções para manter o equilíbrio contratual, como o Instituto da Lesão e a Teoria da Imprevisão, previstos no Código Civil de 2002 (artigos 157, 317, 422 e 478 a 480).
Neste sentido, nos dizeres do renomado Jurista Caio Mário da Silva Pereira: “Se não se previram os acontecimentos extraordinários, que surgiram de improviso e não constavam das cláusulas do ajuste, estes não podem ser tidos como risco assumido pelo devedor, mas fatores de desequilíbrio do negócio, a justificar a revisão do contrato.”
A tragédia no Rio Grande do Sul ilustra um evento imprevisto que impede o cumprimento das obrigações contratuais sem causar prejuízo significativo às partes envolvidas. Portanto, a aplicação da Teoria da Imprevisão é necessária para ajustar as condições contratuais, garantindo justiça social e legalidade conforme regido pelo Código Civil.
Durante a pandemia de Covid-19, o STJ se posicionou sobre a impossibilidade de cumprimento de contratos, conforme o REsp: 2032878:
Nos contratos empresariais deve ser conferido especial prestígio aos princípios da liberdade contratual e do pacta sunt servanda, diretrizes positivadas no art. 421, caput, e 421-A do Código Civil, incluídas pela Lei nº 13.874/2019.4. Nada obstante, o próprio diploma legal consolidou hipóteses de revisão e resolução dos contratos (317, 478, 479 e 480 do CC). Com amparo doutrinário, verifica-se que o art. 317 configura cláusula geral de revisão da prestação contratual e que a interpretação sistêmica e teleológica dos arts. 478, 479 e 480 autorizam também a revisão judicial do pactuado.5. A Teoria da Imprevisão (art. 317 do CC), de matriz francesa, exige a comprovação dos seguintes requisitos: (I) obrigação a ser adimplida em momento posterior ao de sua origem; (II) superveniência de evento imprevisível; (III) que acarrete desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução. A pedido da parte, o juiz poderá corrigir o valor da prestação, de modo a assegurar, quanto possível, o seu valor real…” (in STJ – REsp: 2032878 GO 2022/0324884-3, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 18/04/2023, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 20/04/2023
O acórdão mencionado evidencia que a aplicação da teoria da imprevisão depende da comprovação de três fatores principais: (I) a obrigação deve ser cumprida em um momento posterior ao de sua origem; (II) deve haver a superveniência de um evento imprevisível; (III) esse evento deve causar uma desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o valor no momento de sua execução.
No contexto das tragédias no Rio Grande do Sul, além do evento danoso, a revisão dos contratos com base na teoria da imprevisão não deve ser concebida de maneira abstrata, se fazendo essencial analisar a relação contratual estabelecida entre as partes e a interferência substancial do evento danoso.
A interpretação sistêmica e teleológica dos artigos 478, 479 e 480, combinada com o artigo 317, deve garantir o reequilíbrio necessário das relações contratuais. Esta análise cuidadosa permitirá que as partes afetadas pelas enchentes tenham a possibilidade de ajustar suas obrigações de forma justa e equilibrada.
Portanto, a abordagem jurídica frente a tragédias como as enchentes no Rio Grande do Sul deve ser baseada em uma análise profunda e detalhada das circunstâncias específicas de cada contrato, garantindo que a justiça e a equidade prevaleçam nas relações contratuais afetadas por tais eventos excepcionais.