Gustavo G. Prescinotti
A desconsideração da personalidade jurídica é um dos vários instrumentos processuais de atribuição de responsabilidade a terceiros em caso de desvio de finalidade ou confusão patrimonial conforme prevê o artigo 50 do Código Civil de 2002:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
§ 1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.
§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:
I – cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;
II – transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e
III – outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.
§ 3º O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica.
§ 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.
§ 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica.
Assim a utilização da desconsideração da personalidade jurídica somente será possível nos casos em que o empresário subverter a atividade, ou fundir os patrimônios da pessoa física e da pessoa jurídica. Portanto, este instituto não é cabível por mera vontade da parte executora, devendo haver prova cabal quanto ao preenchimento dos requisitos dispostos no artigo 50 do Código Civil.
Mesmo com essa delimitação legal, existem ainda duas teorias sobre este instituto, a teoria menor e a teoria maior.
A teoria maior, a principal adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro, defende que a aplicação deste instituto apenas pode ser feita quando a empresa for insolvente e concomitantemente, haja a comprovação de abuso.
Já a teoria menor, corrente menos adotada, defende que a utilização da desconsideração apenas depende da insolvência da sociedade e a solvência dos sócios da mesma, não se preocupando com qualquer confusão patrimonial, ou utilização da sociedade com abuso da personalidade jurídica.
Contudo como sabemos as empresas que estão em processo de recuperação judicial possuem alguns tratamentos específicos, sendo assim necessário compreender a o que a jurisprudência afirma sobre a situação.
EMPRESARIAL. AGRAVO INTERNO NO CONFLITO DE COMPETÊNCIA. JUÍZO DA RECUPERAÇÃO E JUÍZO TRABALHISTA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. ARTIGO 82-A DA LEI N. 11.101/2005. INAPLICABILIDADE. DECISÃO MANTIDA.
1. Em regra, a competência para desconsiderar a personalidade jurídica das sociedades em recuperação judicial não é exclusiva do Juízo recuperacional.
2. “O art. 82-A da Lei n. 11.101/2005 é aplicável aos casos envolvendo empresas falidas e não às em recuperação judicial, caso da agravante” (AgInt no CC n. 190.411/DF, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 15/8/2023, DJe de 18/8/2023).
3. Agravo interno a que se nega provimento.
(AgInt no CC n. 194.051/PR, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Segunda Seção, julgado em 17/10/2023, DJe de 20/10/2023.)
AGRAVO INTERNO NO CONFLITO DE COMPETÊNCIA. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. EXECUÇÃO DE CRÉDITO TRABALHISTA. INCLUSÃO DE COOBRIGADOS NO POLO PASSIVO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. COMPETÊNCIA INDISTINTA DA JUSTIÇA COMUM E DA JUSTIÇA DO TRABALHO. AUSÊNCIA DE INVASÃO DE ATRIBUIÇÕES JUDICIAIS. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO.
1. Nos termos da iterativa jurisprudência desta Corte, a Justiça do Trabalho tem competência para decidir acerca da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade em recuperação judicial, bem como para, em consequência, incluir coobrigado no polo passivo da execução, pois tal mister não é atribuído com exclusividade a um determinado Juízo ou ramo da Justiça.
2. A revisão de eventual erro de julgamento deve ser procurada perante a instância prolatora da decisão, pois não é mister do conflito, que limita-se a definir a competência do Órgão Julgador, substituir a instância revisora apropriada.
3. Nesses casos, de redirecionamento da execução para coobrigados, a jurisprudência desta egrégia Corte firmou o entendimento de não reconhecer a existência de conflito de competência, porquanto não há dois juízes decidindo acerca do destino de patrimônio afetado ao plano de recuperação judicial.
4. Incidência da Súmula 480 desta Corte: “O juízo da recuperação judicial não é competente para decidir sobre a constrição de bens não abrangidos pelo plano de recuperação da empresa.”
5. Agravo interno desprovido.
(AgInt no CC n. 196.906/SP, relator Ministro Raul Araújo, Segunda Seção, julgado em 19/3/2024, REPDJe de 13/5/2024, DJe de 22/03/2024.)
O STJ vem decidindo sobre a possibilidade da implementação da desconsideração da personalidade jurídica em empresas em recuperação judicial, pois o acesso ao patrimônio do sócio não afeta o plano de recuperação judicial, uma vez que o capital da sociedade permanece inalterado.
A possibilidade de utilização da desconsideração da personalidade jurídica em empresas em recuperação judicial não prejudica a recuperação em si, mas pode prejudicar os sócios de maneira inesperada, assim é necessário que o plano de recuperação seja integralmente cumprido para não haver risco da utilização deste sistema.
REFERÊNCIAS:
LIMA, Luciane Pimentel. Incidente de desconsideração de personalidade jurídica e os efeitos no processo tributário. Revista de Direito Tributário Contemporâneo. Vol. 12/2018. Pag. 65 – 86. Publicado em Junho de 2018. Disponível em:
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em:< https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm>. .