Isabella Botan
A expressão agronegócio possui origem norte americana, derivada do agrobusiness, termo criado por Ray Goldberg e John Davis em Harvard, no ano de 1957, oportunidade em que foi conceituado como toda e qualquer operação envolvendo a produção e distribuição de suprimentos e produtos agrícolas, armazenamento e processamento de todos os itens derivados desta cadeia produtiva.
No Brasil, o agronegócio é um dos pilares e também a força motriz da economia nacional, possuindo destaque no cenário internacional como produtor e exportador a nível mundial. À vista disto, o produtor rural – pessoa física ou pessoa jurídica – desempenha um papel fundamental em nossa sociedade.
Contudo, nos dias atuais, o setor do agronegócio vem sofrendo expressiva crise econômico-financeira, em razão das adversidades climáticas e oscilação nos custos de produção, ocasionando a quebra de safra, somado ao desamparo do governo federal. Não obstante, muitos empresários buscam a reestruturação de suas dívidas através do instituto da Recuperação Judicial[2], regulamentada pela Lei 11.101/2005.
Destaca-se que a legislação brasileira admite pedido de Recuperação Judicial por produtor rural, desde que exerça a atividade empresarial há mais de dois anos e possua documentos contábeis comprobatórios de inscrição no Registro Público, de modo a assegurar ao produtor rural, pessoa física ou jurídica, as benesses do procedimento concursal.
Com efeito, a reforma da Lei 11.101/2005, apresentou mudanças consideráveis quanto aos créditos sujeitos a Recuperação Judicial do produtor rural. A Lei 14.112/2020, responsável pelas alterações na LRF, promoveu a exclusão da Cédula de Produto Rural (Física) aos efeitos da Recuperação Judicial e também a operação barter, de acordo com o art. 11 da Lei 8.929/1994.
Em se tratando de um dos principais instrumentos para fomento do agronegócio, os autores João Pedro Scalzilli, Luis Felipe Spinelli e Rodrigo Tellechea, discorrem sobre CPR, tendo em vista que “importa compreender a diferença de tratamento entre a CPR de liquidação física e a CPR de liquidação financeira, já que uma delas – a física – é imune aos efeitos da recuperação judicial e a outra – a financeira – se sujeita integralmente a ela. Não havendo uma razão ontológica para essa distinção, acredita-se que o legislador concluiu que o negócio jurídico subjacente à CPR-F se aproxima mais de um financiamento ordinário do que de uma operação típica do agronegócio (…)”[3].
Diante disto, alguns dos Tribunais de Justiça do país vêm firmando tese de que os créditos decorrentes de CPR (Física) e operação de barter além de serem extraconcursais, os bens, objetos de garantia das referidas operações, não possuem essencialidade à atividade empresarial exercida. Em análise ao Agravo de Instrumento autuado sob o n.º 2101008-20.2022.8.26.0000, o Des. Relator da 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJSP defendeu que, operações de antecipação e de troca de insumos são, indubitavelmente, extraconcursais. Por conseguinte, discorreu sobre os bens (insumos e produtos agrícolas) não se enquadrarem como bem de capital essencial às Recuperandas.
O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, define o conceito de bem de capital essencial como “aquele utilizado no processo de produção (veículos, silos, geradores, prensas, colheitadeiras, tratores etc.), não se enquadrando em seu conceito o objeto comercializado pelo empresário”[4]. No entanto, há certa particularidade do produtor rural em relação aos demais empresários comuns.
Explica-se: o produto agrícola, na maioria das vezes, é a única moeda para negociação comercial que pode, de modo exponencial, viabilizar o soerguimento da atividade empresarial exercida, fazendo valer os princípios de preservação da empresa e sua função social, objetivos precípuos contidos no art. 47 da Lei 11.101/2005.
Ou seja, a permissão de quaisquer práticas de constrição sobre produtos agrícolas, pode comprometer completamente a reestruturação almejada pelo produtor rural, inviabilizando o soerguimento empresarial diante da crise econômico-financeira. Portanto, se faz imprescindível a proteção desses bens para que o produtor rural continue operando no mercado financeiro.
A corroborar com o exposto, o autor e doutrinador Manoel Justino Berreza Filho, leciona que “qualquer bem objeto de alienação fiduciária, arrendamento mercantil ou reserva de domínio deve ser entendido como essencial à atividade empresarial, até porque adquirido pela sociedade empresária somente pode ser destinado à atividade exercida pela empresa. Esse caráter de essencialidade, em caso de empresa em recuperação, deve permitir um entendimento mais abrangente do que aquele normalmente aplicado”.
Com vistas a finalidade do instrumento da Recuperação Judicial, qual seja, a superação da crise, permitindo a manutenção da fonte produtora, o emprego dos trabalhadores e o interesse dos credores, para preservar a empresa e sua função social, promovendo estímulo à atividade econômica exercida, o bem essencial não pode ser retirado da posse do produtor rural em Recuperação Judicial, sob pena de impossibilitar a superação da crise econômico-financeira.
Neste sentido, a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Mato Grosso, o 1º estado no ranking de maior produção agrícola do país, possui entendimento consolidado, de modo a obstar excussões sobre bens essenciais ao desenvolvimento das atividades exercidas por produtores rurais, conforme ementa abaixo transcrita:
RECURSO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO – RECUPERAÇÃO JUDICIAL – SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL (COMPRA E VENDA DE SOJA) MOVIDA CONTRA O RECUPERANDO – ABSTENÇÃO DA PRÁTICA DE ATOS DE CONSTRIÇÃO SOBRE BENS E VALORES DO RECUPERANDO – IMEDIATA DEVOLUÇÃO DA SOJA ARRESTADA AO RECUPERANDO – ALEGAÇÃO DE CRÉDITO EXEQUENDO EXTRACONCURSAL E QUE O PRODUTO ARRESTADO NÃO É ESSENCIAL – DESACOLHIMENTO (…) EXAME DA ESSENCIALIDADE DO PRODUTO QUE COMPETE AO JUÍZO UNIVERSAL – MANIFESTAÇÃO DO ADMINISTRADOR PELO RECONHECIMENTO DA ESSENCIALIDADE – PRODUÇÃO E VENDA DE SOJA QUE A ÚNICA FONTE DE RENDA DO RECUPERANDO – RECURSO DESPROVIDO. (…) Se, de acordo com a manifestação do administrador judicial, a soja cultivada e colhida pelo recuperando agravado é a base de sustentação de sua atividade financeira e a principal moeda de troca capaz de fazer o seu negócio alavancar, evitando que vá à bancarrota, deve ser mantida a ordem de suspensão da execução e desconstituição do arresto do produto na execução de título extrajudicial embasada em contrato firmado antes do deferimento da recuperação judicial do executado.” (TJ-MT 10073853320228110000 MT, relator: MARILSEN ANDRADE ADDARIO, data de julgamento: 8/6/2022, 2ª Câmara de Direito Privado, data de publicação: 16/6/2022)
Tratando-se de insumos e produtos indispensáveis para a continuidade da atividade empresarial exercida, estes devem permanecer da posse do produtor rural, sob pena de obstar e inviabilizar a atividade econômica do devedor, frustrando completamente a finalidade da Recuperação Judicial.
Em suma, considerando que a CPR Física e as operações de barter são táticas recomendáveis e vantajosas na mesa negocial do mercado financeiro, especialmente neste momento de instabilidade de preços e quebra de safra, é de rigor observar a essencialidade da matéria-prima para manutenção da atividade desenvolvida pelo produtor rural, em atendimento aos princípios subjacentes da Lei 11.101/2005.
REFERÊNCIAS:
SCALZILLI, João Pedro, Luis Felipe SPINELLI, e Rodrigo TELLECHEA. Recuperação de empresas e falência: teoria e prática na Lei 11.101/2005. São Paulo: Almedina, 2023.
BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de Recuperação de Empresas e Falências – Lei nº. 11.101/2005 – Comentado artigo por artigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. p. 229.
MATO GROSSO. Tribunal de Justiça do Mato Grosso. 2ª Câmara de Direito Privado. Agravo de Instrumento n.º 10073853320228110000. Relator: Desembargador Marilsen Andrade Addario. Julgado em 08/06/2022.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Terceira Turma. Recurso Especial n. 1.991.989/MA. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Julgado em 03/05/2022.
[1]Pós-graduanda em Recuperação Judicial e Falência pela Pontifica Universidade Católica do Paraná – PUC/PR (2024). Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Assistente jurídica na área de Recuperação Judicial. E-mail: belabotan@gmail.com;
[2]“Pedidos de recuperação judicial para produtores rurais cresceram 535% em 2023, diz Serasa” https://www.cnnbrasil.com.br/economia/negocios/pedidos-de-recuperacao-judicial-para-produtores-rurais-cresceram-535-em-2023-diz-serasa/#:~:text=Especial%20SXSW-,Pedidos%20de%20recupera%C3%A7%C3%A3o%20judicial%20para%20produtores,535%25%20em%202023%2C%20diz%20Serasa&text=Os%20pedidos%20de%20recupera%C3%A7%C3%A3o%20judicial,quinta%2Dfeira%20(7).
[3]SCALZILLI, João Pedro, Luis Felipe SPINELLI, e Rodrigo TELLECHEA. Recuperação de empresas e falência: teoria e prática na Lei 11.101/2005. São Paulo: Almedina, 2023.
[4]REsp n. 1.991.989/MA, Relatora Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 3/5/2022, DJe de 5/5/2022.