Natan Roberto Tissei São José
A recuperação judicial visa assegurar a continuidade da atividade empresarial, permitindo que empresas em crise possam se reorganizar e superar dificuldades financeiras, preservando empregos e fomentando a economia local. Nesse contexto, as assembleias de credores desempenham um papel crucial, pois é nesse fórum que são discutidos e aprovados os planos de recuperação. Entretanto, o exercício do direito de voto pelos credores não é absoluto e deve respeitar os princípios da boa-fé e da razoabilidade. É nesse cenário que surge a figura do voto abusivo, que pode comprometer o sucesso da recuperação e, em última instância, prejudicar todos os envolvidos.
O artigo 39, § 6º, da Lei de Recuperação de Empresas e Falências (LREF) estabelece que um voto será considerado abusivo quando “manifestamente busque obter vantagem ilícita para si ou para outrem”. Este conceito, embora objetivo em sua formulação, apresenta uma indeterminação jurídica que demanda interpretação cuidadosa no caso concreto.
O abuso de voto ocorre quando o credor, ao votar em uma assembleia, extrapola os limites de sua posição, utilizando o voto para obter benefícios que não se coadunam com sua condição de credor, mas sim com interesses particulares que prejudicam a coletividade.
O professor Marcelo Sacramone, no livro Comentários à Lei Recuperação de Empresas e Falência, esclarece que a abusividade do voto se caracteriza pela obtenção de vantagens que vão além do interesse legítimo do credor, como, por exemplo, a tentativa de eliminar um concorrente do mercado ou rescindir contratos estratégicos para a empresa em recuperação. Nessas situações, o voto não é pautado pelo interesse na recuperação da empresa, mas sim por objetivos externos, que podem ser danosos ao processo.
A aferição do voto abusivo é intrinsecamente vinculada à análise do caso concreto. Como o voto dos credores em assembleia não precisa ser fundamentado, cabe ao magistrado, ao analisar a deliberação, identificar elementos que possam indicar a abusividade. A indisponibilidade de negociar condições de pagamento ou a irracionalidade econômica de certas exigências podem ser indícios de que o voto foi proferido de forma abusiva.
A jurisprudência tem se alinhado ao entendimento de que, mesmo que um credor detenha a maioria dos créditos em sua classe, seu voto pode ser considerado abusivo se for contrário aos interesses dos demais credores e à superação da crise da empresa. O Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, já se manifestou no sentido de que o voto que rejeita um plano de recuperação sem considerar alternativas viáveis, que poderiam preservar a empresa, seus empregos e a economia local, deve ser visto com cautela.
Diante da possibilidade de votos abusivos comprometerem a recuperação da empresa, a jurisprudência brasileira tem se inclinado para uma mitigação dos requisitos do cram down, especialmente quando há indícios de abuso. O cram down é um mecanismo previsto no art. 58, § 1º da LREF, que permite ao juiz aprovar um plano de recuperação mesmo que ele não tenha sido aprovado por todas as classes de credores, desde que sejam atendidos determinados requisitos legais.
Essa flexibilização é justificada pelo princípio da preservação da empresa, que deve prevalecer sobre os interesses particulares de um credor dissidente. Como destacado pelo STJ, o magistrado deve agir com sensibilidade ao analisar os requisitos do cram down, considerando a coletividade dos credores e evitando que um único credor domine a deliberação em detrimento dos demais.
O voto abusivo representa uma séria ameaça ao processo de recuperação judicial, pois pode frustrar os esforços de reestruturação e, em última instância, levar a empresa à falência. A legislação e a jurisprudência brasileiras, ao reconhecerem a abusividade do voto e permitirem a mitigação dos efeitos do cram down, buscam equilibrar os direitos dos credores com a necessidade de preservação da empresa. Em suma, o combate ao voto abusivo é fundamental para assegurar que a recuperação judicial cumpra seu propósito de superar a crise empresarial, em benefício de todos os envolvidos.